quarta-feira, 23 de julho de 2025

a Cruz e o Surfista

 


A Cruz e o Surfista

Quando terminou o culto de Páscoa, marcado por um coral emocionado e uma encenação da crucificação, todos comentavam sobre o "Jesus" escolhido: um rapaz branco, de barba ruiva e uma tatuagem de tartaruga na perna direita. Ele havia sido crucificado em cena com grande comoção.

No dia seguinte, o zelador Creovaldo — homem dedicado, meticuloso e conhecido por sua devoção ao templo — estava inquieto. A preocupação não era com os figurinos, nem com os bancos desalinhados, mas com a peça central da encenação: a cruz.

— E agora, onde vamos guardar essa cruz? — perguntava, coçando a cabeça com o pano de limpar os bancos.

A cruz media dois metros de altura, pesava cerca de treze quilos, toda feita de madeira bruta, cortada e pregada com esforço por mais de duas semanas. Não cabia no armário do teatro. As salas estavam fora de cogitação: durante a semana funcionava ali uma escolinha para crianças, das 9h às 17h.

— Ela precisa sair daqui até segunda-feira — reforçou o já angustiado e sempre zeloso Creovaldo.

No domingo pela manhã, os responsáveis pelo teatro da igreja se reuniram. A irmã Creotilde ficou de lavar e guardar as roupas. A irmã Creonilde, com sua habitual franqueza, ficou responsável pelas sandálias — algumas já com cheiro de chulé.

— Vou passar creolina e deixar no sol — anunciou com praticidade.

Mas então chegou-se ao ponto mais delicado da pauta: a cruz.

Durante a confecção, a irmã Creuane havia se ferido com pregos — na mão e no pé. Teve reação alérgica ao cheiro forte da madeira e passou dias espirrando. Aquela não era uma cruz qualquer. Tinha sangue deles. Tinha suor. Tinha história. Jogá-la fora era impensável.

Foi então que o irmão Crenilson, morador a três quadras da igreja, teve uma iluminação.

— Irmãos, creio que tive uma ideia divina: e se eu guardar a cruz na minha garagem?

Todos assentiram, aliviados.

Crenilson foi buscá-la. Estava encostada no muro dos fundos, já meio esquecida sob o sol. Ele a pegou como quem segura um recém-nascido — com todo cuidado e reverência. Colocou-a sobre o ombro esquerdo e iniciou sua via-crúcis particular pelas ruas da cidade.

Era um domingo ensolarado em Santos. Gente indo ao mar a pé, famílias de chinelo, crianças com baldes coloridos. Crenilson suava como pano de cuzcuz, mas seguia firme.

Em dado momento, na mesma calçada, surgiu um surfista de bermuda florida e prancha na mão esquerda. Caminhavam lado a lado, cruz e prancha, fé e mar.

Crenilson olhou para o rapaz e sorriu:

— Bela prancha. Bom surfe pra você.

O surfista respondeu, sem hesitar:

— Bela cruz. Boa crucificação pra você.

Um comentário:

Anônimo disse...

O surfista levantou a bola e o irmão Crenilson não bateu - de bate pronto.
Deixou passar a oportunidade, mas abriu uma brecha de diálogo importante.
Sobrou a semântica das palavras no breve dialogo entre os dois.
O comentário do irmão Crenilson sobre a prancha de surf foi o motor gerador da oportunidade.
Por outro lado, o comentário do surfista, sobre a cruz e sua finalidade, mostra que um modelo da Cruz de Cristo chama atenção e cria oportunidades para falar de Seu amor.
Penso….
Quem sabe os dois não se encontram novamente para uma conversa mais aprofundada sobre a verdade da Cruz…. quem sabe!?
Sensacional!!!